Aniello Greco
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Brilho Eterno de uma mente sem lebranças envelheceu como um vinho.

 

Com um dia de atraso retomo a minha jornada de conhecer os 100 (e 5) melhores filmes da história de acordo com a opinião de diretores de cinema, em uma votação realizada pela revista Sight and Sound. Em 03/01/2024 eu iniciei a jornada com a crítica de Trono Manchado de Sangue.

 

O segundo filme da lista, de baixo para cima, é Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças. Sendo um filme mais recente, de 2004, muitos, assim como eu, devem ter assistido à obra no cinema na época de seu lançamento.

 

Em 2004, meu relacionamento com o cinema era bem diferente; jamais imaginaria que brincaria de fazer críticas de cinema décadas depois. Mesmo assim, saí bastante impressionado da sala de cinema. O roteiro de Charlie Kaufman e as interpretações de Kate Winslet e Jim Carrey são capazes de impressionar qualquer um que tenha um coração.

 

No filme, Clementine Kruczynski (Kate Winslet) e Joel Barish (Jim Carrey) enfrentam uma grave crise em seu relacionamento. Clementine opta por fazer um procedimento clínico na empresa Lacuna para apagar da sua memória tudo relacionado a Joel. Este, ao descobrir tal atitude de sua ex-namorada, opta por também passar pelo procedimento. Contudo, durante a execução do apagamento de memória, Joel, inconsciente, desiste e tenta salvar as lembranças de seu relacionamento.

 

Em 2004, saí do filme com a impressão de que tinha assistido a um excelente drama sobre a luta pelo amor verdadeiro, com uma proposta muito inventiva. Vinte anos depois, ao reassistir, o filme me pareceu bem diferente, e muito, muito melhor.

 

Mas, antes de explicar a diferença, vamos falar um pouco mais da jornada.
 

 

Preparação:

 

Ao contrário de Trono Manchado de Sangue, eu tinha uma memória relativamente nítida de quando assisti a Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças. Lembrava claramente da força do roteiro de Kaufman e de como a interpretação de Jim Carrey me surpreendeu positivamente. Então, para entrar no universo desta obra, optei por assistir novamente a Quero Ser John Malkovich, do mesmo roteirista e com estilo surrealista similar, e Rebobine, Por Favor, dos mesmos diretor e roteirista. Este segundo é uma obra mais despretensiosa de Michel Gondry, mas bastante simpática..

 

Então sem mais introduções e preliminares, vamos ao filme.


 

Brilho Eterno de uma mente sem lembranças

 

Um detalhe importante a comentar é que a mesma companheira que me acompanhou no cinema em 2004 para assistir a Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças esteve comigo em meu sofá agora, em 2024, reassistindo. Naquela época, estávamos com três anos de namoro, e já era o meu relacionamento mais longo até então. Hoje permanecemos juntos, vinte anos depois.

 

Parte da mudança do que passei a enxergar no filme se deve a isso. Em 2004, enquanto assistia, imaginei como seria um relacionamento de três anos sendo apagado. Hoje, imaginei como seria ter uma vida construída em conjunto sendo esquecida. E a diferença é enorme.

Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças é daquele tipo de filme que somos incapazes de assistir de modo impessoal. É daquelas histórias que, de tão íntimas, se tornam universais. Mas não de um modo em que todos assistam sob um ponto de vista similar; pelo contrário, todos assistimos dentro de nosso universo muito particular.

Boa parte disso ocorre devido ao fato de que a história se passa quase que inteiramente na mente de Joel Barish durante o procedimento de apagamento de memórias. Isso faz com que muitas das cenas sigam uma lógica de realismo fantástico e surrealismo, onde as regras do mundo deixam de ser físicas e naturais e passam a ser de associações de ideias e conceitos. Nisto, o filme tem muito em comum com Quero Ser John Malkovich.

 

A primeira impressão que temos é de estar em um mundo dos sonhos, e de fato temos muito de linguagem onírica aqui. Mas não é a melhor comparação. Joel Barish não está sonhando com Clementine Kruczynski, mas sim relembrando e deslembrando de sua namorada. Não se trata da lógica dos sonhos, e sim da memória.

 

E, ao contrário do que gostamos de pensar, nossas memórias não são como arquivos de computador, com os dados registrados de cada momento. Não são filmes de nosso passado, e sim um conjunto de experiências e emoções associadas umas às outras, onde o presente reescreve o passado e onde o que descobrimos hoje nos faz rever o que aconteceu ontem com outros olhos.

 

Toda vez que nos lembramos de algo, estamos revivendo nossas experiências passadas com a mente do nosso eu presente. E com isso, acabamos por recontar o que vivemos. Todos sabemos que o narrador é parte da narrativa. E por isso, a lembrança da infância nunca é a infância, e sim o adulto narrando a criança. Nós não só esquecemos o passado desimportante, como também damos novos destaques, contextos e até mesmo pequenos acréscimos em nosso passado. Quem conta um conto aumenta um ponto, mesmo quando contamos o conto para nós mesmos.

 

Esse processo dinâmico pelo qual as memórias são reconstruídas a cada recordação é conhecido na neurociência como reconsolidação. A reconsolidação sugere que, ao acessarmos uma memória, ela se torna maleável e sujeita a alterações antes de ser ‘rearmazenada’. Isso explica por que as memórias podem mudar com o tempo, adquirindo novos contextos ou detalhes conforme são influenciadas por experiências subsequentes e pelo estado emocional atual. No filme, vemos essa maleabilidade das memórias em ação: cada interação de Joel com suas lembranças não é apenas um reviver do passado, mas uma reinterpretação e uma reconstrução desse passado. Assim como a neurociência explica, o Joel do presente influencia ativamente como as memórias do passado são formadas e reformadas, o que ressalta a natureza complexa e fluída da memória humana.

 

Ou seja, o passado tem o poder de reescrever o presente. Joel, magoado com Clementine por escolher esquecê-lo, opta por cometer o mesmo crime, um homicídio triplo retroativo: de matar Clementine como sua namorada, de se matar como namorado de Clementine, de matar o casal que Clementine e Joel foram. Mas, ao se confrontar com o que seria apagado, revive o passado e percebe o absurdo do crime.

 

A solução que Joel, ou mais exatamente a imagem de Clementine nas lembranças de Joel, encontra é esconder Clementine em memórias nas quais ela nunca esteve. Esta é uma ideia nunca proposta pelo próprio Joel, mas sim por como ele se lembra de Clementine. E isso ilustra muito bem o papel dinâmico e atemporal que a lembrança da amada tem na mente do amante. Joel quase não consegue lembrar de nada sem Clementine, tendo de ir à sua tenra infância, nas suas vergonhas e humilhações juvenis e infantis, para encontrar cenas sem uma namorada que só veio a conhecer muito depois.

 

O mesmo posso dizer de minha companheira. Apesar de ter vivido vários anos adultos sem ela ao meu lado, não consigo dissociar o Aniello adulto, a figura que chamo de eu, da presença dela. Ela reescreveu meu passado. E, assim como Joel, consigo muito bem projetá-la em minha infância, como uma presença atemporal, apesar de só ter entrado em minha vida aos 27 anos.

 

Há uma cronologia similar ao excelente Amnésia. O filme parece narrado de trás para frente, não sendo exatamente uma narração que começa no futuro em direção ao passado. A ordem das lembranças não é cronológica, e sim emocional. Começa da dor e do desencanto em rumo ao amor e à paixão. Neste ponto, Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças tem uma estrutura do estereótipo da comédia: começa tudo mal e termina no passado onde tudo era brilhante e glamouroso. Mas ainda tem um retorno ao presente, que deixo para o final.

 

Esta cronologia analógica (no sentido de não lógica nem cronológica) poderia ficar confusa, mas Michel Gondry consegue de um modo muito visual e prático nos orientar sobre quando cada cena ocorre. Basta ver a cor do cabelo de Clementine. Usando os nomes citados pela Clementine no filme, quando o cabelo está “Revolução Verde”, estamos no início do relacionamento. Quando está “Agente Laranja”, estamos na principal fase do relacionamento, mas também na fase das primeiras crises. Um detalhe importante: Joel se apaixona pelo laranja desde o início, na época no agasalho de Clementine. Quando é da cor “Ameaça Vermelha”, temos as cenas com um tom mais erotizado, de paixão. E por fim, temos a cor do cabelo no presente do filme, adequadamente batizada de “Ruína Azul”. Azul, a cor da tristeza e de um relacionamento em ruínas.

 

Cabe especial atenção no uso das cores não apenas no cabelo de Kate Winslet, mas em todo o filme. Como, por exemplo, na mudança de cor dos livros ao fundo em uma certa cena da livraria, ou do uso do branco nos momentos mais puros, e de cores quentes nos momentos mais “impuros”.

 

Além do roteiro genial de Kaufman, o segundo ponto forte está nas interpretações. Kate Winslet entrega, para mim, o melhor papel de sua excelente carreira. Jim Carrey tem, se não o seu melhor papel dramático, algo similar ao também excelente O Show de Truman. A química entre os dois é essencial ao sucesso do filme. Mas os coadjuvantes não ficam atrás, com Kirsten Dunst, Mark Ruffalo e Tom Wilkinson em ótimas performances. O ponto dissonante é Elijah Wood. Não sei dizer ao certo se foi má interpretação ou má construção do personagem, mas a caracterização da personagem Patrick ficou apenas na superfície.


A trilha sonora alterna da alegria e deslumbramento para a completa tristeza com facilidade. Mas os melhores usos da música são nas cenas de suspense claustrofóbico, quando cada vez mais as memórias se apagam e Joel e Clementine correm em direção ao núcleo da história do seu romance.

 

 

SPOILERS A PARTIR DE AGORA

Como amante de ficção científica, tenho para mim que o bom sci-fi fala não de possíveis tecnologias, mas sim do impacto destas tecnologias no humano. Neste sentido, Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças é ótimo sci-fi.

 

Isso fica ainda mais claro ao pensarmos na importância de Mary Svevo (Kirsten Dunst) para a história. Mary é a única personagem que conhecemos, além de Joel e Clementine, que teve sua memória apagada. E são as ações dela, ao devolver os arquivos clínicos aos pacientes da clínica Lacuna, que permitem a solução final do filme..

Além disso, vale analisar com calma como Clementine interage com Patrick. A crise existencial inexplicável (para ela) que Clementine passa ao ter Joel apagado, e como diante de uma cópia mal feita de Joel feita por Patrick, apenas aprofunda o vazio. 

Joel, Clementine e Mary não conseguem escapar do passado esquecido, e trilham novamente os caminhos que os levaram à desilusão. Mary apresenta duas citações no filme sobre os méritos de esquecer. Uma é a que dá título ao filme. A segunda é de Nietzsche: “Abençoados os que esquecem, porque aproveitam até mesmo seus equívocos”. O filósofo alemão defendia que vivemos em um eterno retorno, que o universo é uma constante recorrência e que o passado e o futuro irão se repetir em ciclos infinitos. Diante disto, só resta aos corações mais sábios desenvolver o “amor fati”, o amor ao fado. Devemos abraçar nosso destino e aprender a amar até mesmo as nossas maiores dores.

 


Joel e Clementine decidiram apagar as desilusões de suas vidas, mas foram lembrados que estas desilusões só ocorreram como resultado de suas maiores alegrias. E diante da possibilidade do eterno retorno, decidiram que a dor da desilusão amorosa é mais tolerável que o vazio de não ter o amor.


Não à toa, no diálogo final entre Joel e Clementine, ambos percebem que mais uma vez encontrarão diversas coisas que não gostariam de ver no outro. Irão novamente se sentir aprisionados, sufocados e infelizes. Mas… Ok. É isto. Amor fati.

 

AVALIAÇÃO FINAL

 

Assim como fiz em Trono Manchado de Sangue, aqui vai a minha avaliação pessoal de Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças nos seis quesitos por mim propostos para esta lista:

 

DIREÇÃO: Michel Gondry fez um excelente trabalho, especialmente na montagem das cenas e na direção dos atores. Segundo comentários dos bastidores, ele permitiu que todos os atores improvisassem à vontade, exceto Jim Carrey. Creio que a vedação ao improviso tenha ocorrido para evitar os traquejos cômicos tão presentes nos filmes anteriores do ator. Um pouco da comicidade corporal de Jim Carrey aparece no filme, e em especial em uma cena na qual ele simula estar com a garganta cortada, o resultado é questionável. Além disso, a cena em que Gondry opta por representar Joel com quatro anos de idade através de alguns truques de perspectiva ficou pouco funcional. No resto, a direção é exemplar. 4/5.

 

ROTEIRO: O ponto mais forte do filme é, exatamente, o roteiro de Kaufman. Um dos melhores roteiros originais da história do cinema. 5/5.

 

PRODUÇÃO: A decupagem de cenas é importantíssima, com difíceis transições entre cenários. A trilha sonora e o figurino contribuem muito para a narrativa. Nota máxima. 5/5.

 

ELENCO: Para mim, a melhor atuação da carreira de Kate Winslet e uma das melhores de Jim Carrey. E um dos casais com mais química romântica que lembro de ter visto. Os atores coadjuvantes também fazem grandes performances, com exceção de um questionável Elijah Wood. 4/5.

 

IDENTIFICAÇÃO PESSOAL/ENTRETENIMENTO: Romance não é meu estilo favorito de filme, nem de longe. Mesmo assim, a qualidade do roteiro e a construção dos personagens transcendem qualquer gênero. E os elementos de surrealismo e de ficção científica definitivamente são temas que me agradam muito. 5/5.

 

ATEMPORALIDADE/UNIVERSALIDADE: É um filme que transcende gerações. Creio que faria muito sucesso mesmo se tivesse sido lançado na década de 1980 ou hoje. Mas talvez não seja totalmente universal. Pelo menos não teve o impacto pleno e avassalador no Aniello com pouca experiência em relações duradouras de 2004. 4/5.

 

Nota final: 27/30.
 

Aniello Greco
Enviado por Aniello Greco em 07/01/2024
Alterado em 07/01/2024
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